segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Receita de Ano Novo



 Carlos Drummond de Andrade
Itaguara num olhar - Luiz Felipe Greco






"Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido).

Para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior).

Novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?)

Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo.
Eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre."

domingo, 22 de setembro de 2013

Telegrama






 Carlos Drummond de Andrade

Emoção na cidade.
Chegou telegrama para Chico Brito.
Que notícia ruim,
que morte ou pesadelo
avança para Chico Brito no papel dobrado?

Nunca ninguém recebe telegrama
que não seja de má sorte. Para isso
foi inventado.

Lá vem o estafeta com rosto de Parca
trazendo na mão a dor de Chico Brito.
Não sopra a ninguém.
Compete a Chico
descolar as dobras
de sua tragédia.

Telegrama telegrama  telegrama.

Em frente à casa de Chico o voejar múrmure
de negras hipóteses confabuladas.
A estafeta bate à porta.
Aparece Chico, varado de sofrimento prévio.

Não lê imediatamente.
Carece de um copo d'água
e de uma cadeira.
Pálido, crava os olhos
nas letras mortais.

Queira aceitar efusivos cumprimentos passagem
data natalícia espero contar valioso apoio
distinto amigo minha reeleição deputado
federal quinto distrito cordial abraço
Atanágoras Falcão.

Carlos Drummond de Andrade. Telegrama, in Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 8/7/72.

sábado, 31 de agosto de 2013

Homenagem da Ester ao HOD



Há um silêncio nas coisas não entendidas,
Um abismo entre a vida e o seu significado
e eu habito esse vácuo inóspito,
em tentativas re-sentidas.
.
Há um silêncio entre a vida e a morte
E o que será amanhã e depois,
E as palavras não ditas que sentimos
Na chuva que cai dos meus olhos.
.
Há um silêncio na despedida
Na aspereza da amizade interrompida
Nas lembranças que rasgam o dia.

Há um silêncio que não se cala
E ensurdecem os ouvidos,
Esse grito calado que me escapa.

Ester

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Além da Imaginação



Tem gente passando fome.
E não é a fome que você imagina
entre uma refeição e outra.
Tem gente sentindo frio.
E não é o frio que você imagina
entre o chuveiro e a toalha.
Tem gente muito doente.
E não é a doença que você imagina
entre a receita e a aspirina.
Tem gente sem esperança.
E não é o desalento que você imagina
entre o pesadelo e o despertar.
Tem gente pelos cantos.
E não são os cantos que você imagina
entre o passeio e a casa.
Tem gente sem dinheiro.
E não é a falta que você imagina
entre o presente e a mesada.
Tem gente pedindo ajuda.
E não é aquela que você imagina
entre a escola e a novela.
Tem gente que existe e parece imaginação.


Ulisses Tavares

sábado, 27 de julho de 2013

Remexendo o baú


Pois é... Remexer em arquivos de backup dá nisso! Vasculhar arquivos é relembrar o tempo ido... O que é impressionante é que a poesia não se envelhece nunca e os rabiscos, um dia lançados a ermo, de repente são resignificados, ganham outros contornos, permitem outros voos, que não assombram... ao contrário, permanecem convidativos.

Numa dessas "remexidas" resgatei o texto construido, talvez por outro cara, ou quem sabe, pelo mesmo cara que ainda mora nesta alma de caminheiro. Eis o texto, que à época chamei de "Cumplicidade Virtual":


O ato da indagação supõe ousadas vontades travestidas de incertezas e incólumes desejos,ambas as coisas, nascidas do sonho vivido.

Sonho que, inerte, pergunta se vale o caminhar...
Se o caminho existe...
Se espinhos são oferecidos...
Se pés descalços merecem o chão...
Se o caminheiro não é virtual...
Tão somente virtual...

Nesse íntimo e sombrio solilóquio, ainda matizado pela virtualidade, manifesta-se a euforia que não ressente o medo...
Que imagina a face, mas não vê o olhar...
Que toca os lábios, mas não ouve os sussurros...
Que se deleita na pele suave, mas não mergulha na alma...

É quando então ressurgirmos e junto carregamos o medo.
Medo de ousar...
De viver...
De pertencer...
De permitir-se...
De encontrar e desencontrar...

Medo do sonho ser verdade e da virtualidade, ainda que desconhecida a incompletude, faça repousar, insana, a vida em frenesi.

Só uma palavra então é permitida à imensidão dos olhos, ao sussurro da voz e aos inquietos gestos de busca: ENCANTAMENTO.

Já não há medo!

Já sou cúmplice do jeito de andar!!

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Chegadas e Partidas - Ainda Ser Feliz



Agora é dizer sobre  partidas e chegadas... 

Opto então por pensar “partidas e chegadas” enquanto processos evolutivos do ser, enquanto instâncias de refazimento de si e de criação das novas metas, em constante processo "espiralado" de reconstrução.

Essa evolução, por todos experimentada, talvez com ponto de partida bem delineado, mas sem ponto final ou de chegada definido, por conta também das involuções sofridas, é a trajetória natural de cada ser humano.

A falta do ponto final nos remete à estrada sem fim, à amplidão do rumo, onde o horizonte é tingido, aos nossos olhos, por cores de nevoeiro, poeira, chuvas torrenciais, escuridão, reflexos de luzes, enfim, são metáforas dos desafios a ultrapassar, das curvas montanhosas a sobreporem declives e aclives acentuados, e tudo isso nas desconhecidas formas e condições de prosseguir os passos.

Evolui-se entre tantas chegadas e tantas partidas, por vezes concomitantes. Alguns param na chegada. Outros não querem mais a partida. Alguns se aquietam nos pontos de descanso da estrada e não se pode dizer que são menos felizes por isso. São escolhas. Optou-se por permanecer naquele lugar, independentemente das limitações impostas. É que nem todos tem a aptidão para explorar outros caminhos, a alma não é expedicionária e nela não mora a curiosidade, nem tampouco a ousadia. Ou nada disso. Apenas se escolheu ficar...

Outros são afoitos nas partidas. Não saboreiam a chegada. Não permitem que os olhos descansem, por segundos sequer, nas novas paragens. Não apreendem, portanto não aprendem. O pensamento intuitivo ignora o convite reflexivo. Etapas são puladas. Esses também não são menos felizes por isso! Só há pressa. O olhar, talvez, esteja lançado adiante. Outras são as escolhas. Também esses não são menos felizes por isso...

Outros ainda enamoram-se das chegadas, tecem laços emotivos para além do tempo permitido. Acomodam-se na intensificação do sabor experimentado. Lambuzam-se, em demasia. Adormecem nos braços convidativos da suposta felicidade que não reclama reforço, cuidados ou sonhos. O tempo, quem sabe, um pouco mais adiante, vai exigir desses algum desapego e releituras.  E também não são menos felizes por isso!

Há então os que titubeiam ante as escolhas de partir ou de chegar. Há medo de partir, pois não se quer abrir mão do que já tem. Há medo de chegar, pois o enfrentamento dos desafios vestidos de  “novo e desconhecido”  faz desestabilizar a autonomia.  Incertos dos passos e dos rumos, acolhem os ditames de outros viajantes, muitos desses oriundos de lugares inóspitos e inabitados por almas humanas. Incautos, sobrevivem à sombra de si mesmos, desconhecendo dores aguçadas e sorrisos engrandecidos, por isso respiram involução, num edema pulmonar prestes a subtrair-lhes a vida. Esses sim, provavelmente são menos felizes por isso!

Ser feliz então, entre partidas e chegadas ou entre chegadas e partidas, exige a capacidade de seguir adiante, com a humilde consciência do aprender a aprender e do aprender a ser; do refazer-se, do desconstruir e reconstruir-se, em permanente estado de alerta. É insistir nos passos, ir com as mãos vazias e límpidas, dando sacudidelas nos entulhos não recicláveis, revigorando-se e lançando fora o que já não serve mais. Seguir evoluindo, não desconhecer as involuções, mas jamais fugir das escolhas.


E, se preciso for, vale o “metamorfoseio” ambulante, já cantado por Raul: “... prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Sobre o que é o amor, sobre o que eu nem sei quem sou...”


E você!?