terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Um Homem de Consciência

Cavaleiro, de Francisco Lopes

Monteiro Lobato



Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto do coração o deperecimento visível de sua Itaoca.

"isto já foi muito melhor", dizia consigo. "Já teve três médicos bem bons — agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...."

João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.
 
"É isso", deliberou lá por dentro. "Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui."

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!...

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou seu cavalo magro e partiu.

— Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

— Vou-me embora  —respondeu o retirante. — Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

— Mas, como? Agora que você está delegado?
 
— Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro. Adeus.

E sumiu.


Monteiro Lobato. Um Homem de Consciência, in Cidades Mortas. Editora Brasiliense. São Paulo, 1965, pp. 185-186.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O Bicho

Pedro Serra - Blog Sem Destino




Manuel Bandeira



Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.



Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.



O bicho não era um cão.

Não era um gato

Não era um rato.



O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira. Belo, Belo, in "Obra Completa". Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1967

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O Pombo Enigmático

Foto de Sandro Silva - Amanhecer na Candelária-RJ


                Na inelutável necessidade do amor (era quase primavera), pombo e pomba marcaram um encontro galante quando voavam e revoavam no azul do Rio de Janeiro. Era bem de manhãzinha.
                —Às quatro em ponto me casarei contigo no mais alto beiral  —disse o pombo.
                — Candelária? — Perguntou a noiva.
                —Do lado norte — respondeu ele.
                —Tá — assentiu com alegria e pudor a pomba.
                Pois, às quatro azul em ponto, a pomba pontualíssima pousava pensativamente no beiral. O pombo? O pombo não.
                A pombinha, que era branca sem exagero, arrulhava, humilhada e ofendida com o atraso, contemplando acima do campanário todas as possibilidades da rosa-dos-ventos. Mas na paisagem do céu voavam só velozes andorinhas garotas, porque as andorinhas mais velhas enfileiravam-se nas cornijas, pensando na morte, como gente fina, lá dentro, nos dias solenes de missa de réquiem.
                Quatro e dez. Quatro e um quarto. Uma pomba sozinha à mercê quem sabe de um gavião, lendário mas possível. Sol e sombra. Como custa a passar um quarto de hora para uma noiva que espera o noivo no mais alto beiral. Como a brisa é triste. Como se humilha em revolta a noiva branca.
                Ah, arrulhou de repente a pomba, quando distinguiu, indignada, o pombo que chegava caminhando pelo beiral mais alto, do outro lado, lá onde, um pouco além, gritavam esganadas as gaivotas do mar pardo do mercado. Irônica, perguntou a pomba:
                — Perdeste a noção do tempo?
                — Perdão, por Deus, perdão — respondeu o pombo — Tardo mas ardo. Olha que tarde!...
                — Que tarde? — perguntou a pomba.
                — Que tarde! Que azul! Que tarde azul!
                — Mas e eu? — disse a pomba  — Sozinha aqui em cima!
                — A tarde era tão bonita —disse o pombo gravemente  — a tarde era tão bonita, que era um crime voar, vir voando.
                — Mas e eu?! Eu!? — queixava-se a pomba.
                — A tarde era tão bonita — explicou o pombo com doce paciência  — que eu vim andando, que eu tinha de vir andando, meu amor.


Paulo Mendes Campos. O Pombo Enigmático, in Quadrante. 
Editora do Autor, Rio de Janeiro, 1962, pp. 93-94.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Um Apólogo




Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que você está com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que os coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia nada: ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. Era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais do que o plique-plique-plique-plique da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário.

E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar a vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei essa história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!





Machado de Assis, Um Apólogo, in Várias Histórias, Obra Completa, 
Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1962, pp. 554-555.



quarta-feira, 25 de julho de 2012

Porteiras na Estrada da Vida

Uma foto, por vezes, permite mergulhos prá dentro da alma... E não foi diferente com esta aqui...


quinta-feira, 19 de julho de 2012

Da minha precoce nostalgia

Maria Sanz Martins


Imagem: http://www.corposaun.com


Quando eu for bem velhinha, espero receber a graça de, num dia de domingo, me sentar na poltrona da biblioteca e, bebendo um cálice de Porto, dizer à minha sobrinha neta:
- Querida, venha cá. Feche a porta com cuidado e sente-se aqui ao meu lado. Tenho umas coisas pra te contar.
E assim, dizer apontando o indicador para o alto:
- O nome disso não é conselho, isso se chama corroboração! Eu vivi, ensinei, aprendi, caí, levantei e cheguei a algumas conclusões. E agora, do alto dos meus 80 anos, com os ossos frágeis, a pele mole e os cabelos brancos, minha alma é o que me resta saudável e forte.
Por isso, vou colocar mais ou menos assim:
- É preciso coragem para ser feliz. Seja valente.
- Siga sempre seu coração. Para onde ele for, seu sangue, suas veias e seus olhos também irão.
- E satisfaça seus desejos. Esse é seu direito e obrigação.
- Entenda que o tempo é um paciente professor que irá te fazer crescer, mas escolha entre ser uma grande menina ou uma menina grande, vai depender só de você.
- Tenha poucos mas, bons amigos. 
- Tenha um jardim.
- Aproveite sua casa, mas vá a Fernando de Noronha, a Barcelona e a Austrália.
- Cuide bem dos seus dentes.
- Experimente, mude, corte os cabelos.
- Ame. Ame pra valer, mesmo que ele seja o carteiro.
- Não corra o risco de envelhecer dizendo "ah, se eu tivesse feito..."
- Tenha uma vida rica de vida. Vai que o carteiro ganha na loteria - tudo é possível, e o futuro é imprevisível.
- Viva romances de cinema, contos de fada e casos de novela.
- Faça sexo, mas não sinta vergonha de preferir fazer amor.
- E tome conta sempre da sua reputação, ela é um bem inestimável. Porque sim, as pessoas comentam, reparam, e se você der chance elas inventam também detalhes desnecessários.
- Se for se casar, faça-o por amor. Não faça por segurança, carinho ou status. A sabedoria convencional recomenda que você se case com alguém parecido com você, mas isso pode ser um saco! Prefira a recomendação da natureza, que com a justificativa de aperfeiçoar os genes na reprodução, sugere que você procure alguém diferente de você. Mas para ter sucesso nessa questão, acredite no olfato e desconfie da visão. É o seu nariz quem diz a verdade quando o assunto é paixão.
- Faça do fogão, do pente, da caneta, do papel e do armário, seus instrumentos de criação.
- Leia, pinte, desenhe, escreva.
- E por favor, dance, dance, dance até o fim, se não por você, faça-o por mim.
- Compreenda seus pais. Eles te amam para além da sua imaginação, sempre fizeram o melhor que puderam, e sempre farão.
- Cultive os amigos. Eles são a natureza ao nosso favor e uma das formas mais raras de amor.
- Não cultive as mágoas - porque se tem uma coisa que eu aprendi nessa vida é que um único pontinho preto num oceano branco deixa tudo cinza.
- Era só isso minha querida. Agora é a sua vez.
 
- Por favor, encha mais uma vez minha taça e me conte: como vai você?

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Aprender o Diálogo

Eis aí um das grandes dificuldades do ser humano: falar demais e escutar quase nada! E como o diálogo quase já não é servido ou é tão "porcamente" servido! 

Teima-se "adivinhar" as atitudes, o caráter, a índole e a infinita exuberância do ser, apenas na "rasura" dos próprios conhecimentos, compreensões permitidas ou ainda pior, conforme o tamanho das percepções de que dá conta...